Conhecendo Veneza 3 – A história de Veneza no Palazzo Ducale

Primeiro de novembro de 1756, uma manhã ensolarada com uma deliciosa brisa que insiste em invadir Veneza, dois homens saem discretamente pela porta pesada do Palazzo Ducale, a Porta della Carta, um imenso portal do séc XV. Muito sorrateiramente eles ganham a piazzeta San Marco em meio a multidão e, de repente, disparam correndo em direção à laguna, passando perto das duas colunas imponentes de San Marco e San Teodoro. Ali pegam uma das inúmeras gôndolas com cobertura e desaparecem pelo Grand Canal. Mas tiveram o cuidado de gritar bem alto para todos ouvirem que iam a Fusina, e no meio do caminho corrigiram a rota para a ilha de Mestre, assim, se alguém corresse atrás deles iria para o caminho contrário ao dos fugitivos. Estas gôndolas posteriormente foram proibidas por esconderem facilmente casais em encontros amorosos proibidos ou criminosos, como estes que acabaram de protagonizar a fuga mais mirabolante de uma das fortalezas da República de Veneza, dizem que deram um trato no visual antes da fuga, para não serem facilmente reconhecidos como prisioneiros, saíram da prisão pelas portas da frente sem serem percebidos!!!

O imponente, majestoso e singular Palazzo Ducale oferece beleza e muita história para seus visitantes.

O imponente, majestoso e singular Palazzo Ducale oferece beleza e muita história para seus visitantes.

Já se passaram 94.194 dias, o sol continua no céu, a brisa continua a soprar, e novamente duas pessoas saem pelas mesmas portas, dessa vez um casal, que sai tranquilamente, vagando sem destino, tentando absorver tudo o que acabara de ver. Esse casal é o mesmo que vos escreve, mas e os dois homens da fuga? Você sabe de quem estávamos falando? Acertou quem pensou no famoso sedutor Casanova. Ele foi uma das personalidades venezianas mais famosas, com direito até a filme hollywoodiano contando sua história. Preso por seu estilo de vida e condutas um pouco desviadas do padrão da sociedade da época, conseguiu fugir despercebido com seu companheiro de cela do palácio mais protegido de Veneza. E que palácio! Vamos conhecer um pouco mais?

O Palazzo

O Palazzo Ducale ou Palazzo Doge, é uma atração famosa de Veneza, que tem origem desde o século IX, mas o edifício foi demolido e o atual é uma linda construção que foi construída em 1309, sendo finalizada em 1424, e encanta de longe por sua beleza e cor contrastante com o azul da Laguna. Uma das características marcantes é que seus mosaicos da fachada em mármores rosa e branco adquirem vários tons em sua coloração de acordo com a luminosidade durante o dia.

Detalhe para a fachada externa, as delicadas colunas, o mosaico branco-e-rosa e os postes mais que românticos de Veneza.

Detalhe para a fachada externa, as delicadas colunas, o mosaico branco-e-rosa e os postes mais que românticos de Veneza.

Também impressionante é a sensação de desafiar a gravidade com o pesado segundo andar sobre as graciosas e leves colunatas e arcadas do térreo e primeiro andar. E se sua beleza da área externa encanta, a opulência, a riqueza e sua história dentro de suas paredes tiram o fôlego dos visitantes.

O Palazzo Ducalle foi a residência dos Doges de Veneza e continha os escritórios de várias instituições políticas, organizados ao redor de um pátio central. Mas o que era um Doge?

Os doges

O Doge (do latim dux, “chefe”) era o dirigente máximo da República de Veneza. Os seus atributos simbólicos eram ainda reminiscências do Império Bizantino. Durante mais de mil anos a cidade de Veneza, e mais tarde a Sereníssima República de Veneza, elegia um Doge, um título raro mas não único na Itália. Os Doges de Veneza eram eleitos até ao fim da vida pela aristocracia da cidade-estado e eram normalmente escolhidos entre os mais velhos nobres da cidade.

Retrato do doge Leonardo Loredano por Giovanni Bellini (1501).

Retrato do doge Leonardo Loredano por Giovanni Bellini (1501).

Apesar do grande poder que dispunham os doges de Veneza, estes eram obrigados por lei a estar para o resto da vida no complexo do Palácio Ducal e Basílica de São Marcos, com raras dispensas para deslocar ao exterior por motivos diplomáticos – ao contrário dos doges da República de Gênova, que tinham mais liberdade. Do século IX ao século XII, os doges mantiveram o domínio veneziano no mar Adriático. Enrico Dandolo chegou a se denominar soberano de um quarto e meio de todo o Império Romano.

Entrando no Palazzo

Hoje a entrada principal não é mais a Porta della Carta (que é a saída atualmente), mas você entrará pela lateral, de frente para a Laguna, perto da Ponte della Paglia. Passando pela compra dos bilhetes chegamos ao pátio principal, uma imensa área aberta no interior do edifício.

Entrada do Palazzo Ducale, hoje na larteral do mesmo.

Entrada do Palazzo Ducale, hoje na larteral do mesmo.

O Pátio

O pátio ou Cortille do palácio é circundado por arcadas e loggias, assim como na área externa do edifício. Lá ocorriam as cerimônias de coroação dogal e torneios anuais de caça aos touros, algo como as touradas espanholas…

Vista do pátio interno, assim como na fachada exterior, colunatas e arcadas sustentam graciosamente o maciço segundo andar.

Vista do pátio interno, assim como na fachada exterior, colunatas e arcadas sustentam graciosamente o maciço segundo andar.

No centro há dois poços que proviam abastecimento de água para todo o palácio. Em uma das arcadas você verá um exemplar histórico de um dos maiores ícones venezianos, uma gôndola.

O pátio é uma imensa área onde ocorriam cerimonias dogais e torneios de touradas. Detalhe para um dos poços que abasteciam todo o Palazzo. Aos fundos, vê-se a Basílica de San Marco.

O pátio é uma imensa área onde ocorriam cerimonias dogais e torneios de touradas. Detalhe para um dos poços que abasteciam todo o Palazzo. Aos fundos, vê-se a Basílica de San Marco.

Um exemplar das gôndolas cobertas fica exposto no pátio interno do Palazzo. Este tipo de gôndola foi proibido e não existe mais nas águas de Veneza.

Um exemplar das gôndolas cobertas fica exposto no pátio interno do Palazzo. Este tipo de gôndola foi proibido e não existe mais nas águas de Veneza.

Detalhe para o relógio no pátio interno.

Detalhe para o relógio no pátio interno.

Detalhe decorativo da linda arquitetura do Palazzo Ducale.

Detalhe decorativo da linda arquitetura do Palazzo Ducale.

A Scala dei Giganti

A Escadaria dos Gigantes deve o nome às duas estátuas marmóreas de Sansovino, representando Marte e Neptuno. É uma escadaria monumental que liga o pátio à logia interior do primeiro andar e era o lugar dedicado à cerimônia de coroação ducal. As duas estátuas colossais deviam representar o poder e o domínio sobre a terra firme e sobre o mar.

A Scala dei Giganti e seus dois Gigantes.

A Scala dei Giganti e seus dois Gigantes.

Neste lugar ocorreu a famosa execução de um dos doges, registrada em uma pintura de Fancesco Hayez, a execução de Marin Faliero, um doge que conspirou para tomar o poder e tornar-se um príncipe de Veneza, mas foi descoberto antes de pôr em prática seus planos.

A última hora do doge Marino Faliero - Francesco Hayez (1867)

A última hora do doge Marino Faliero – Francesco Hayez (1867)

A Scala D’Oro

A continuidade da Scala dei Gigante é a Scala D’Oro, ou Escadaria de Ouro, nome devido ao teto coberto com estuque branco e folhas de ouro, levando do piso das Loggias ao segundo andar, onde ficavam os apartamentos dos Doges. Sem dúvida é de tirar o fôlego de quem sobe através das mesmas.

A Scala D'Oro, suntuosa escadaria com apliques de ouro no teto levavm direto aos aposentos dos Doges.

A Scala D’Oro, suntuosa escadaria com apliques de ouro no teto levavm direto aos aposentos dos Doges.

Detalhe do teto da Scala D'Oro, provoca muitos suspiros de seus visitantes.

Detalhe do teto da Scala D’Oro, provoca muitos suspiros de seus visitantes.

Primeiro andar, ou piso das Loggias

Pode-se observar tanto em seu interior, quanto no exterior do edifício, os corredores imensos das Loggias, suportando o pesado segundo andar. Aqui funcionavam a administração, a parte militar e o sistema judiciário.

A Sala dello Scrigno (sala do Relicário), continha o Libro d’Oro (livro dourado) que continha o registro de todos patrícios venezianos e o Libro d’Argento (livro de Prata), que registrava todos os cidadãos venezianos em plenos direitos, ou originarii.

Já na Sala della Milizia da Mar (Sala da Milícia do Mar) ocorria o recrutamento para os navios de guerra da potente frota veneziana.

Nas Salas do Ambiente Judiciário praticava-se julgamentos e aqueles que eram condenados seguiam para a prisão do outro lado do rio que passa ao lado do Palazzo Ducale. Para chegar até lá era só atravessar a famosa Ponte dos Suspiros.

A Ponte dos Suspiros e Prisões

Confesso que passar por essa ponte dá para sentir que o clima começa a ficar mais denso. A ponte estreita com pequenos orifícios dão direito a observar parte da Ponte della Paglia e seus transeuntes, e dá ao visitante a sensação que os próprios prisioneiros tinham ao atravessar rumo à escuridão das prisões, para nunca mais serem vistos…

A misteriosa Ponte dos Suspiros.

A misteriosa Ponte dos Suspiros.

A ponte foi muitas vezes símbolo do amor para muitos turistas desavisados que não conheciam o verdadeiro sentido do seu nome. A maioria acreditava que o nome era devido aos muitos casais românticos que passavam sob a mesma e trocavam beijos para poder retornar a Veneza, ou durar para sempre o amor… Pudera o sentido do nome fosse esse!

A verdade é que deve-se ao eco das conversas e lamentos dos prisioneiros nas celas, que dava para ouvir de lá da Ponte della Paglia como sussurros, por isso o nome Ponte dos Suspiros…

A vista para a Ponte della Paglia e a Laguna, esta era uma das últimas vistas dos presos do Palazzo Ducale ao atravessarem a Ponte dos Suspiros rumo ao cárcere.

A vista para a Ponte della Paglia e a Laguna, esta era uma das últimas vistas dos presos do Palazzo Ducale ao atravessarem a Ponte dos Suspiros rumo ao cárcere.

Já nas prisões você tenta recriar o que aconteceu naquele ambiente tão frio e denso. Algumas celas com um pouco mais de conforto (se podemos usar essa palavra) do que outras… Para se ter acesso a celas melhores, deveria-se pagar diárias melhores! Isso mesmo, os presos pagavam seus gastos ou eram esquecidos nos piores lugares – há também relato de algumas celas mais inferiores (as Pozzi, ou poços) que ficavam abaixo do nível da água, tornando-as extremamente úmidas, escuras e insalubres.

Corredores das Prigioni Nuove (Prisões Novas), que ficam do outro lado da Ponte dos Suspiros.

Corredores das Prigioni Nuove (Prisões Novas), que ficam do outro lado da Ponte dos Suspiros.

Salão del Maggior Consiglio

O passeio até aqui já havia valido a pena, mas o clímax estava para chegar… Este imenso salão, o Salão do Conselho Maior, de 53 metros de comprimento por 25 de largura, é um dos maiores de toda Europa. Abrigava muito bem até 2000 patrícios nas reuniões da Assembléia do Conselho Maior.

Em 1577 um incêndio destruiu a mesma, cabendo a Tintoretto, Veronese e Palma il Giovane decorarem novamente seu interior. Destaque que não podíamos deixar de observar é a imensa tela de Tintoreto na parede dos fundos, trata-se do Paraíso, sendo a maior tela do mundo na época!

O Salão do Maggiore Consiglio e sua suntuosidade, nos fundos pode-se ver a maior tela da época, O Paraíso, de Tintoretto. Foto de:photo credit: <a href="https://www.flickr.com/photos/ngai/245076091/">ngai</a><a href="http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/">cc</a>

O Salão do Maggiore Consiglio e sua suntuosidade, nos fundos pode-se ver a maior tela da época, O Paraíso, de Tintoretto. Foto de: negai cc

Claro que tratando-se da sala mais importante do palácio, não poderiam esquecer de prestar homenagens aos ilustres doges venezianos. Correndo sob o teto há vários retratos dos ilustres chefes do estado Veneziano. Mas aqui entra uma curiosidade. Um dos doges está com um pano preto pintado sobre seu retrato. Trata-se de Marin Faliero, que sofreu não só a pena de morte, como dissemos na escadaria dos gigantes, mas também sofreu outra pena: pelos seus feitos contra a República Veneziana sua imagem também deveria ser condenada ao esquecimento, não sendo digno de estar no salão.

Rodeando o teto do Salão há um retrato que foi escondido, o do doge Marin Faliero, que foi decapitado.

Rodeando o teto do Salão há um retrato que foi escondido, o do doge Marin Faliero, que foi decapitado.

Sobre o pano há a seguinte descrição em latim: “Estaria neste local, Marino Faliero, decapitado por seus crimes”.

Os Apartamentos ducais

Aqui ficam os vários apartamentos dos doges. A maioria das salas é ricamente decorada com obras de Tintoretto e Veronese. Aqui pode-se observar quanta opulência viviam os doges e os visitantes podem conferir a importância que a República Veneziana teve em certo período ao dominar o Adriático.

Outras salas

Ainda há muitas salas para se visitar, a do Arsenal expõe inúmeras armas e armaduras medievais do palácio, há a sala dos globos terrestres, que encantam por podermos observar as noções de cartografia da época. Há ainda um passeio guiado que leva a outras salas que não pudemos conferir, inclusive salas de tortura nas prisões.

Uma das salas do Palazzo que expões seu arsenal...

Uma das salas do Palazzo que expões seu arsenal…

Cuidado para não parar na boca do leão

Estranhou esse título? Pena que não era nada agradável estar na boca do leão, às vezes era melhor estar numa de um leão de verdade do que esta que lhe conto. Trata-se da Bocca di Leone, eram locais para receber denúncias anônimas para a Inquisição investigar na época de grandes execuções… Existiam várias destas espalhadas pela cidade, uma em cada bairro – coitado daquele que tivesse inimigos, seu nome ia pra a boca do leão… Também encontramos uma dessas em Verona, no período que a República Veneziana dominava…

A Bocca di Leone, era tipo uma caixinha de correios para algo muito sombrio - denuncias anônimas à Inquisição.

A Bocca di Leone, era tipo uma caixinha de correios para algo muito sombrio – denuncias anônimas à Inquisição.

Porta della carta

Enfim saímos do Palazzo pelo o que era sua antiga entrada, as mesmas portas pelas quais o fugitivo do início deste post também saiu. Trata-se da Porta della Carta, nome devido afixarem neste local as novas leis e decretos… O portal já é um espetáculo por si mesmo em estilo gótico florido, encanta pela decoração, demonstrando que dentro daquelas portas encontramos maravilhas em arquitetura, arte e história, mas quanta história!!!

A Porta della Carta, dá para ter uma noção do que o visitante encontrava ao adentrar por estas portas. Foto de:<a href="https://www.flickr.com/photos/infomuseum/14207845293/">infomuseum.org</a> <a href="http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.0/">cc</a>

A Porta della Carta, dá para ter uma noção do que o visitante encontrava ao adentrar por estas portas. Foto de:infomuseum.org cc

Curiosidades e Observações:

  • Não deixe de dar uma passadinha na loja do museu, com certeza você vai querer levar algum souvenier para recordar a visita… Como somos colecionadores de livros guia de museus, não deixamos de trazer o nosso…
  • Na ópera La Gioconda de Almicare Ponchielli, uma das mais famosas óperas italianas, o primeiro ato chama-se A Boca do Leão pois um dos personagens, Barnabé, coloca os nomes do casal Enzo e Laura, acusando-os.
  • Em 1867 Mark Twain visitou o Palazzo Ducale e registrou detalhadamente, bem como outros locais de Veneza, no seu livro The Innocents Abroad, que relata sua viagem pela Itália.
Vista das logias do Primeiro andar para o lindo verde da Laguna Veneziana.

Vista das logias do Primeiro andar para o lindo verde da Laguna Veneziana.

 

Palazzo Ducalle
(Palazzo Doge)
Piazza San Marco, 52.
diariam: 8h30 – 19h. Ultima entrada 18h.
€16,00. – Ingresso Musei San Marco.

 

Leia mais da Série Conhecendo Veneza em:

Esta série de posts sobre a cidade de Veneza pode ser facilmente acessada ao clicar sobre os ícones abaixo.

Episódio 3 - A história de Veneza no Palazzo Ducale

Episódio 3 – A história de Veneza no Palazzo Ducale

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Confira!

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5 comentários sobre “Conhecendo Veneza 3 – A história de Veneza no Palazzo Ducale

  1. Leidiane

    O post mais completo sobre o Palazzo Ducale, texto com bastante riqueza de detalhes! Minha vista à Veneza será mais completa depois de ter lido esse texto! Parabéns!

  2. Carla

    Estive lá hoje…paguei 19 euros…. E não tinha filas….
    De fato, me deu um certo mal-estar ao passar pelas prisões….sensação péssima e eu doida pra achar a saída, mas só fazendo todo caminho da prisão…rsss…..que horror !!

  3. Alexandre

    Bom dia.
    Gostaria de saber se comprando um ingresso no site oficial do Palácio Ducal é possível evitar as filas de entrada.
    Grato,

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